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sexta-feira, janeiro 25, 2008

Contabilidade


Havia três coisas que odiava profundamente. Três coisas capazes de lhe provocar uma tumultuosa indisposição física, convenientemente assinalada por um ardor na garganta, e que por azar aconteciam recorrentemente no seu dia a dia.

A primeira era escorregar ou desequilibrar-se enquanto caminhava na rua. O pavor de sentir o seu corpo tombar descontroladamente em qualquer direcção, ou pior, dos seus pés tropeçarem ou resvalarem em qualquer falha na calçada, fazia com que caminhasse quase sempre com os olhos pousados à frente dos seus sapatos. A segunda era ser tocado por estranhos em situações completamente desnecessárias, como filas do autocarro, assentos de qualquer meio de transporte público ou ao entregar o cartão de crédito aos empregados das lojas e restaurantes. Por fim, era capaz de sentir um asco misantrópico sempre que lhe pediam direcções. Era incapaz de dizer a outros por onde ir, para onde seguir, que rumo tomar. Durante a sua vida apenas memorizou o nome de meia dúzia de ruas, sempre por motivos de correspondência postal. E apesar de saber exactamente a distância em qualquer unidade métrica entre vários locais pelos quais passava recorrentemente (casa, trabalho, restaurante italiano preferido, tasca com os melhores petiscos, e outros), não conseguia indicar decentemente como ir ter a esses sítios. Perdia-se na sua mente, entre curvas à esquerda e à direita, cruzamentos inexistentes e nomes de pessoas mortas misturadas com jogadores de futebol, cantores e ministros que nunca correspondiam ao nome de nenhuma rua.

Naquele dia, não tinha acontecido nenhuma destas situações.

Entrou no prédio à hora habitual. A cabeça baixa enquanto rodava a chave da porta de entrada era o perfeito mecanismo de defesa para a eventual presença de um vizinho no interior do prédio. Ao evitar o contacto visual conseguia também evitar a conversa fútil e fugaz. Não que esta o incomodasse, mas nunca sabia exactamente o que dizer e raramente prestava atenção ao tempo que fazia lá fora. Três trincos mais tarde, entrou em casa. Descalçou os sapatos negros e engraxados e alinhou-os com os outros cinco pares de sapatos negros e engraxados que o esperavam na penumbra do armário.

Tudo naquela casa espelhava a natureza funcional que o definiam e que tinha lentamente absorvido do seu trabalho como criador de linhas de montagem fabris. Entre a sobriedade das paredes cinzentas e o reluzir negro da mobília de carvalho, não existia um único elemento, um único objecto naquelas cinco divisões que não tivesse a sua utilidade calculada, a sua necessidade prevista. Era como se a sua casa fosse mais uma das suas linhas de montagem e a sua vida quotidiana fosse o produto fabricado.

Embora os seus dias fossem rotineiros, não se pode dizer que essa linearidade e estabilidade fossem algo que tivesse procurado intencionalmente. No percurso da sua vida, passo atrás de passo, sem hesitar demasiado nem arriscar imprudentemente, conseguiu construir aquilo a que muitos poderiam chamar uma vida tranquila. Vivia sozinho, mas não era um homem solitário. Tinha um emprego estável, apoiado numa carreira sem sobressaltos, mas nunca receou ficar desempregado ou mudar a sua ocupação. Ao considerar ser outra coisa que não criador de linhas de montagem, sempre que tal ideia lhe assaltava a mente, apenas um elemento mantinha-se constante: o exercício metodológico da lógica. A matemática ensinara-lhe que é possível descobrir incógnitas se não errarmos na análise, conjugação e desenvolvimento das diferentes partes segundo determinadas regras. Que cada parte leva-nos até um final. Que esse final, para além de ser a soma das partes, é o produto da precisão de cada uma. Era assim que trabalhava e era assim que procurava viver. Cuidando os pormenores, atento ao detalhe. Nunca se sentia cansado dos seus gestos habituais, que eram seus por serem necessários à sua vida, naquele espaço e naquele tempo. Sabia-o intimamente.

Após o jantar desleixado, as arrumações imprescindíveis, o serão dividido entre o computador, a televisão e um livro, vestiu o pijama, trancou a porta, e arrastando os chinelos pelo chão espelhado entrou no seu quarto. Há uns anos atrás tinha iniciado uma espécie de ritual diário que preservava com religiosa devoção. Após um dia como aquele, ou como qualquer outro, que o tinha deixado particularmente bem disposto, lembrou-se de assinalar com um sinal "mais" o quadrículo em que se encontrava no calendário que guardava junto à cama. Um pequeno gesto resultou em dois pequenos traços sobrepostos, leves e sorridentes, que pretendiam fazer perpetuar no futuro aquele momento de passado.

Hoje senti-me bem no final do dia, dizia-lhe aquele sinal. Neste dia fui feliz, continuou a dizer-lhe ao longo dos dias. Hipnotizado pelo pequeno desenho na imensa rede mensal que pintava cada uma das folhas, começou a assinalar dia após dia como se sentia. Se os dias tivessem sido bons, colocava um "mais". Se maus, um "menos". Uma simplicidade matemática que conservou durante anos, de noite em noite, e que o fazia olhar para si mesmo e para o mundo antes de adormecer, antes dos detalhes se deteriorarem nos músculos da memória.

Foi quase instantânea a percepção que teve sobre a utilidade daquela acção. Se implementado com uma honesta ponderação, aquele sistema poderia fazer-lhe descobrir uma das grandes incógnitas da sua vida: serei feliz?. A pergunta era imensa, vasta como todos os oceanos sobrepostos uns em cima dos outros, e nunca conseguia encontrar uma resposta que o aliviasse. Toda a relatividade dos factos, a permeabilidade dos sentimentos e as falhas de percepção deixavam-no tonto e chegava mesmo a desmaiar. E como odiava tombar, mesmo em casa, deixou de pensar nisso.

Com o método do calendário encontrou uma possível resposta que não envolvia qualquer tipo de vertigem ou náusea. Era bastante simples. No final de cada semana, somava as cruzes positivas e os traços negativos. Comparava os resultados e, dependendo do valor de cada um, determinava se tinha sido uma boa ou má semana e assinalava-a com o correspondente sinal. Depois, somando e comparando os valores das semanas, determinava o mês. E por fim, somando e comparando os meses, determinava o ano. No saldo dos anos, positivos ou negativos, sabia que conseguia calcular se era feliz ou não. Previu que depois de muitos anos, depois do tempo se alojar nas rugas, nos cabelos e nos ossos, faria a contagem final e encontraria a resposta. Saberia como partir.

Como em qualquer edifício, a eficácia e viabilidade deste método encontrava-se na sua base. Para conseguir aceitar algo tão frio e calculista como determinante da sua posição anímica no mundo, como avaliação última da sua vida, precisava de conseguir fazer uma disciplinada avaliação de cada um dos seus dias. A cruzinha descontraída que tinha fundado o método não poderia repetir-se nunca mais. Cada sinal teria de ter o peso da honestidade, prudência e justiça emocionais e racionais. Por exemplo, sabia que, ao executar a tarefa no final da noite, mesmo antes de se deitar, não poderia deixar-se levar pelos acontecimentos mais recentes. Se uma saída à noite com os amigos tivesse sido divertida, se tivesse conhecido alguma rapariga ou visto um bom filme, esta não poderia sobrepor-se ao facto de ter assistido a um crime durante a hora de almoço ou de ter sido tocado várias vezes nos braços e nos calcanhares enquanto esperava pelo autocarro. Isto exigia-lhe um tremendo esforço mental para recordar cada pormenor com o devido distanciamento, e sem nunca se tornar insensível, e quase sempre, após a marcação do calendário, caía sobre a cama exausto e dormia sem sonhar até de manhã.

Já sentado, começou a meditar sobre o dia para poder completar mais um quadrado. Porém, algo estranho aconteceu naquela noite. Por mais que se esforçasse, não conseguia encontrar nas dezasseis horas que esteve acordado motivos suficientes para poder decidir que símbolo colocar, o que sentir. Revia meticulosamente cada hora do dia. Do acordar ensonado ao cambalear cansado ao regressar do trabalho. Conseguia compreender e ver que o dia não tinha sido mau, mas era incapaz de concluir, pela ausência do negativo, que tivesse sido um dia positivo. Pela primeira vez em mais de vinte anos não conseguia obter o resultado final. As suas mãos começaram a suar, dezenas de pequenas comichões explodiram por todo o seu corpo e a temperatura do quarto aumentava minuto após minuto de indecisão. Pensou em romper o sistema e utilizar um novo símbolo que representasse aquele dia. Uma excepção à regra. Talvez um zero ou os parêntesis curvos, representando um conjunto vazio. Mas não podia ser, não conseguia aceitá-lo. O zero fazia-o sentir como se o dia não tivesse existido, como se tivesse dormido durante todo o tempo. O conjunto vazio tinha o defeito de fazer parecer que nada ocorrera naquele dia normal, o que faria perder a coerência alimentada durante os vários anos, durante todos os outros dias parecidos àquele.

Em completo desespero, passaram-lhe pela cabeça centenas de símbolos e definições matemáticas. Talvez pudesse criar um novo símbolo, que era só para aquele dia, que simbolizasse aquilo ali, aquele momento. Sentiu-se altivo e arrogante, e não conseguiu. Afinal, quem era ele para criar um novo símbolo matemático? Uma nova palavra.

O lamento interior ressoava nas paredes lisas do quarto. Voltou ao maldito dia. Com a perícia de um arquivista experiente, recuperou das gavetas da memória cada cena que compôs o seu dia. Cada interacção, cada conversa, cada gesto e cada pensamento. Esforçou-se diligentemente por encontrar uma carga positiva ou negativa em cada um deles, por ver como aqueles momentos despertavam em si sentimentos positivos ou negativos. O mundo envolvente afundou-se na espiral meditativa em que se encontrava e os sons nocturnos desvaneceram sob as vozes e ruídos que compuseram a manhã, a tarde e o anoitecer passados. Ficou horas neste estado: sentado à beira da cama, com os olhos fechados e tremendo nervosamente. A sua garganta ficou seca de tanto suar. Se continuasse assim ou sofria um aneurisma, ou ficava desidratado.

No limite do suportável, o seu corpo cai para trás e os olhos abrem-se. Afundado no colchão húmido, fixou o olhar numa minúscula fissura do tecto e respirou profundamente. Estava a meio da sua vida, concluiu, e a partir daquele dia sabia que iria desaparecer lentamente. A partir daquele dia começava o resto dos seus dias. Aquele dia, vivido como qualquer outro, foi o primeiro dia em que o mundo lhe foi indiferente. Em que se sentiu indiferente ao mundo. Tudo o que aconteceu, o que sentiu e o que lhe foi dado a conhecer, atravessou-o por completo, deixando-lhe o peito ferido, vertendo pouco a pouco a vida que o preenchia. Não doeu. Nem sequer o sentiu. Apenas agora, à noite, cumprindo o seu ritual, pôde reparar na enorme ferida invisível que transportou durante todas aquelas horas.

Estava tudo destinado a repetir-se, como se entrara na segunda metade de uma circunferência perfeita. Com suficientes conhecimentos de geometria e álgebra, seria possível prever o exacto dia da sua morte. Ele poderia fazê-lo, se quisesse. Esta possibilidade destruía-o violentamente. Por dentro, sentia os seus órgãos serem esmagados, um a um, pela iminência do seu final. Por dentro, sentia-se velho e a apodrecer. Por dentro, sentia-se em paz.

Levantou-se da cama com o pijama colado às costas e o olhar sereno. Abriu a janela. A luz lunar misturava-se com o amarelo dos candeeiros. O ar fresco trazia o som de alguns carros que fugiam à madrugada apressadamente. Sentou-se no parapeito e inspirou profundamente. Novamente. Conhecia o andar em que vivia, a altura a que estava e o peso do seu corpo. Era uma equação fácil, aquela que determinava o tempo, em milissegundos, e a velocidade, em metros por segundo, em que o seu corpo iria embater no solo. Era uma suposição fácil, aquela que o assegurava da eficácia da sua queda. Com todas as incógnitas postas em evidência completadas com os seus respectivos resultados finais, e perfeitamente equilibrado, deixou-se cair. O tempo que demorou a atingir o solo foi suficiente para se sentir sorrir. Pensou se estaria realmente feliz ou se era apenas a força do vento ao embater violentamente na sua face que provocava aquele esticar e contrair de músculos. Pensou durante muito tempo nisso, ou pelo menos pareceu.

No final, não errou. Pensou, aproximadamente, durante 3706 milissegundos.


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música: The Mars Volta - Wax Simulacra
pensamento: fragmentos

Æmitis :: 21:49 :::

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