sábado, novembro 01, 2003
Refúgio
O papel de parede, que morre em pedaços arrancados pelas unhas do tempo e do abandono, tem um padrão negro como as manchas de humidade que pintam o tecto. Por vezes parece surgir um malmequer esbranquiçado e mal definido, outras partes há que parece emergir desfocados corpos encaixados uns nos outros. A luz branca, baça pela gordura do candeeiro que a contem, é intermitente... parece comunicar comigo numa sequência desconhecida, num código ainda por desvendar. O cadáver da borbolheta aparece e desaparece com cada golpe de claridade.
Um perfeito e cirúrgico corte abre o corpo e solta a alma. O papel, a minha arma, tem frases soltas com palavras presas em nada e a nada. É um corte de papel este que hoje flutua pela pele cansada. Não há sangue, não há sujidade para empurrar para debaixo do tapete da vergonha. Há apenas a irritação, o ardor que acorda todos os nervos.
Pego na folha. O braço treme como se estivesse a executar uma tarefa sob o chicote que o educa e comanda. Leio os riscos que tinha feito segundos atrás apenas. Não os reconheço e não os relembro. Não fui eu, o que sou agora, que os escrevi. Foi o outro. Cada traço, cada curva provocam-me uma inquietude que não quero sentir. Não quero mais sentir! Abrem-se mais linhas vermelhas e rasga-se a folha...
Cai a borboleta queimada... enquanto dança, desfaz-se em cinza e pó. Desfaz-se tão perfeitamente que se mistura com ar. Saio e fecho a porta. Ponho a chave no bolso e a máscara na face.
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música: Dredg - Triangle
pensamento: "and babies are born in the same buildings where people go to pass away"
Æmitis :: 18:03 :::