quarta-feira, agosto 03, 2005
Ressaca
“Acordei num lugar estranho.”
Queria sentir-me assim. Queria estar num atordoado despertar com paredes dissemelhantes e outros sons, outros cheiros. Virar a almofada a encontrar outro tipo de mensagem escondida, outro código, outras palavras. Talvez, num dia qualquer, encontrar alguém ao meu lado, igualmente estranho e inerte. Dizia-me “bom dia” e partia, deixando os lençóis enrugados.
Ligo a televisão, já desligado dos pensamentos que restaram do sonho, e encontro, como sempre, o mesmo programa. Dez minutos de entrevistas mudas a sombras de cadeirões, repetidamente. Sempre, sempre, sempre o mesmo programa. É inútil mudar de canal, alterar a frequência ou contorcer a antena, nada se altera. Ajusto o brilho, o contraste e qualquer outra característica do televisor que ofereça alguma diversidade ao longo das horas.
Estou preocupado. Comecei a transportar-me para dentro do programa televisivo, mas não como um participante ou interveniente, é muito mais profundo que isso. Eu sou o programa e ele modula-se comigo. Quando estou triste, ponho o ecrã completamente negro. É diferente de desligar pois ainda resta algum brilho e consegue-se ouvir a electricidade correr pelos cabos de cobre e as outras vísceras tecnológicas do aparelho. Vejo o meu reflexo no escurecido quadrado e estou triste. Poderia fazer o inverso quando acordo bem disposto, subir toda a luminosidade e transformar o quadrado numa tela branca de luz frenética... mas isso não acontece desde que fiquei sem comprimidos.
Já tentei interpretar o programa, procurando encontrar-lhe uma qualquer mensagem subliminar, um qualquer sentido celestial, um propósito para o seu constante aparecimento. Tentei durante dias seguidos. Consultei livros sobre simbologia, arquitectura, comunicação televisiva e visual, até metafísica e sonhos, qualquer tema que me pudesse ajudar. Formulei teorias e colei-as em todas as paredes, com letras legíveis a metros de distância, para que não as esquecesse mesmo enquanto estava deitado. Mas nada me trouxe paz ou uma qualquer iluminação. Eram só sombras, cadeirões, microfones no chão e um cenário feito de cartão. Estéril. Sentia-o.
“Acordei onde adormeci.”
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música: Jeff Buckley - New Year's Prayer
pensamento: apenas para me mover de novo
Æmitis :: 22:15 :::
Comentários:
E sem grandes surpresas retorna-se sempre ao mesmo sítio 'estranho' como se estivessemos presos a um bocado de Tempo perdido.
Um ciclo. Um ciclo, que para uns se tornará mais leve pela ignorância e para outros mais pesado pelo reconhecimento.
E para outros ainda, as duas coisas por se tratar mesmo de um ciclo.
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Um ciclo. Um ciclo, que para uns se tornará mais leve pela ignorância e para outros mais pesado pelo reconhecimento.
E para outros ainda, as duas coisas por se tratar mesmo de um ciclo.