segunda-feira, agosto 30, 2004
Procedimento (in)Correcto: Cura.
Estás confortável? Queres que coloque mais papel e mais palavras no fogo? Eu não me aproximo, sei que não queres contagiar-me. Sempre controlaste a minha saúde, sempre tentaste salvar o que restava, mas agora, tens que te manter afastada para me proteger. Irónico, não achas? Agora, és tu que estás deitada nesta cama de hospital e neste quarto de hospício e neste edifício de câmara mortuária. Ambos tínhamos o olhar noutro local. Ou, se calhar, era só o meu que estava iludido. Compreensível erro, insuportável consequência.
A tua pele muda, com os dias. O meu oxigénio não te consegue alcançar e o pouco de mim que ainda restava no teu corpo morre pouco a pouco. Já nem posso estar ao lado da cama, nem segurar na tua mão e nos tubos que a perfuram, nem ouvir a máquina que confirma a tua resistência. Ou será desistência? O papel manchado que me deixaste não tinha a resposta, não tinha nenhuma pergunta.
Deste lado do vidro, não és a mesma. Como um espelho partido ou deformado, o que parece ser o teu reflexo é-me estranho e distante. Prefiro as fotografias que encontro nos corredores. Alguns objectos teus ainda estão espalhados pelo chão, em casa. Tropeço constantemente. Por vezes faço-o propositadamente, mas não me magoo. Negar? Porque não? Continuo com a mesma reduzida capacidade imunológica, quer esteja a sorrir, ou não.
Em breve, faço outro transplante. Não quero soar pessimista, mas sei que o vou rejeitar de novo. Não é intencional, acredita. Eu vejo os mesmo corpos que se arrastam que tu. Eu sei que eles seriam compatíveis com todos os meus órgãos, e eu, incompatível com todos eles. Não escolhi ser assim. É algo que não posso alterar. Vou adaptando-me e tento respirar o melhor que posso. Posso sempre optar por algo artificial, pré-fabricado, importado de um qualquer laboratório experimental… Com sorte, ainda contribuo para algo benéfico para toda a humanidade. Outras cobaias não faltarão.
Já nem existe vidro. Só uma porta fechada com o teu nome, alterado. Adeus. Vou voltar para casa e arrumar a roupa que deixaste rejeitada e usada em cima da cama e no chão, as canecas sujas e quase vazias em cima da mesa-de-cabeceira, os cabelos com pequenos nós e grandes feridas na escova, os restos mortais no cinzeiro… pela última vez.
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música: The Mars Volta - Televators
pensamento: desencontro programado
Æmitis :: 04:35 :::
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