terça-feira, setembro 09, 2003
Retorno
As ondas rebentavam com mansidão. Calmas e contínuas, como a pulsação de quem dorme um longo e desejado sono. Era um fim de tarde sem muita luz e o céu pintou-se de cores emprestadas à terra. No chão, a areia tinha um branco de leite. E aquele buraco, feito pelas mãos virgens de um qualquer aventureiro, tinha um tom mais escuro e intrigante. O meu olhar ficou retido neste estranho elemento. Aproximei-me. Mais cores se revelaram aos meus olhos. O que fora à distância de alguns metros uma mancha cinzenta na imensidão pálida era agora uma palette de sonhador. Impossível de distinguir exactamente que cores, que tons, que texturas nele estavam contidas; ousei entrar. Súbitamente, o chão não era chão, o fundo não era fundo e a gravidade era deusa. O meu corpo caía descontroladamente e a minha mente não a acompanhava. Estava distanciado de mim próprio. Via-me cair mas não me sentia. Não sentia a vertigem nem o ar a roçar-se na minha pele. Não sentia. O tempo, o espaço, tudo se contorceu e se retorceu, misturando-se e fluindo sobre si, ao longo de mim e fora de mim. As paredes, que eram agora todo o meu universo, passavam a uma velocidade fumegante, mas incompreensivelmente, eu assimilava todos os seus pormenores. A textura rugosa e áspera do pequeno granito, ou o negro liso e polido pelo mar do basalto. Todos os detalhes, os pequenos traços deste meu envolvente passageiro estavam plenamente presentes em mim. Eu sentia o respirar da terra. O cheiro do mar penetrante. Ouvia, sem um só som ecoar no exterior, um gemido gélido e doloroso de uma fonte longínqua. Ouvia-o intensamente. Até que este som harmonioso e docemente desconhecido se tornou toda a minha realidade. A intensidade aumentava proporcionalmente ao meu esforço de compreender a sua origem, a sua mensagem. Atingiu tal força que uma linha vermelha líquida percorreu o meu pescoço. O corpo caía. A mente ruía. E nenhuma saída se encontrava próxima, nenhum fim, nenhum... depois o silêncio. doloroso. estava de volta à praia. o sol estava já esquecido. o mar tocava-me os pés descalços, como o resto do meu corpo. silêncio. doloroso. o buraco infinito não era. no chão apenas dois pequenos círculos deformados de cor escarlate. eram sangue. era meu. silêncio. doloroso. como uma forte pancada invisíel retomei o contacto com o meu corpo. caminhei em direcção incerta. para o mar. o horizonte chamava-me. sem voz. sem som. só vibração. silêncio. doloroso. a água era quente. sentia-me confortável neste regresso a fluído umbilical. silêncio. apenas silêncio.
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música: Svartsinn - The Obvious Faces
pensamento: "cleanse and purge me in the water"
Æmitis :: 03:52 :::